A cultura é outra vez entendida, desde o final do século XX, como recurso privilegiado (e acaso derradeiro) de recuperação da cidade e do espaço público. A tensão nas cidades é grande, neste momento em que 80% da população mundial vive urbanamente ou, em todo caso, em aglomerações às quais ainda se dá o nome de urbanas embora o real sentido dessa palavra esteja hoje esquecido. A cena é ocupada, de um lado, pelas cidades-espetáculos – como Barcelona, Berlim, Beijing -, e de outro pelas cidades-paranoia, como São Paulo, Rio e México. Gestores culturais e pesquisadores da cidade refletem aqui sobre as experiências na busca de uma nova governança das cidades tendo por centro a idéia da cultura.
A CIDADE, OS DIREITOS, A CULTURA
Nos agitados e esperançosos anos 60, Henri Lefebvre publicou um livro que seguia as linhas do novo pensamento sobre o modo de ver o homem e seu mundo: o direito à cidade, que teve o prazer de introduzir na cena brasileira. À época não havia ainda uma clara consciência dos direitos culturais — por muitos então considerados supérfluos, mero desvio das “verdadeiras questões” — embora o tema já aparecesse nos documentos internacionais. Foi preciso esperar pelo final dos anos 70 para que uma segunda declaração da UNESCO sobre o assunto lhes desse visibilidade sensível e mais uma década passaria antes que a questão começasse a circular abertamente pelos seminários, conferências, simpósios, acordos. Hoje início do século XXI, os direitos culturais estão na parte mais evidente da mesa da sociedade e dos políticos e não mais apenas na dos intelectuais e ativistas. A cultura retoma o lugar que é seu.
E pode dar à ideia do direito à cidade uma outra dimensão. A cidade é hoje vista, em amplas porções do mundo, mais como uma inevitabilidade do que um lugar de escolha onde o ser humano pode desenvolver suas potencialidades. A cidade já foi uma aglomeração orgânica, relativamente ocasional; depois, uma questão de urbanismo e arquitetura; agora, está claro que se não for uma questão de cultura, no sentido mais amplo, não será nada. O direito à cidade se traduz, hoje, em direitos culturais. É o modo mais sintético de entendê–los é através da cultura no centro da vida pública, coordenando e pensando todas as iniciativas, planos e projetos, de toda natureza, dos transportes à saúde passando pela educação.
Utopia? Em certos lugares do mundo, nem tanto. Ou longe disso. Disposição relativamente simples que incidam sobre a cultura transformam radicalmente a vida de um bairro, de um distrito, de uma cidade — de um país. Há, neste livro, diversos relatos que mostram como e por quê. A vinculação da cultura à economia é um dos caminhos nessa direção. Mas não o único. Em Ibiza, por exemplo, pensa-se mais em qualidade de vida do que no PIB. Em Bilbao discute-se se a presença do Museu Guggenheim alavancou a transformação radical da cidade ou é conseqüência dela — mas o ponto novo e importante é que o Museu esta no centro das atenções.
Com cultura, com muita cultura, é possível que as cidades se transformem em espetáculos (e talvez, caso se passe do ponto, em meros espetáculos); e sem cultura, as cidades continuam sendo cidades paranóicas, para usar as expressões de Canclini. Pode a cultura modificar as anomalias estruturais de uma cidade? Existe hoje a desconfiança — e, mais que isso, claros sinais objetivos — de que só a política ou um conjunto de ambas não fará as mudanças de raiz necessárias. Talvez não se possa fazer das cidades aquilo que se pretende. Mas não há porque ver passivamente a cidade derrapar para o buraco negro da incivilidade e da perda do real sentido do que é ser urbano. O recurso à cultura é uma estratégia eficaz. Em todo caso, melhor.
Teixeira Coelho