Anton Reiser é uma das obras fundamentais da literatura alemã, mas pouco conhecida no Brasil. O mesmo pode ser dito de seu autor, Karl Philipp Moritz (1756-1793), a quem Johann Wolfgang von Goethe chamou de “irmão mais jovem”. O grande poeta alemão se interessou por Moritz pela comunhão de ideias e interesses, além de semelhanças biográficas. Anton Reiser costuma ser equiparado a uma das obras-primas de Goethe, O aprendizado de Wilhelm Meister. Em comum, os dois romances acompanham a formação de um intelectual e questionam o papel da educação na vida de um personagem em permanente conflito entre sua vocação e as possibilidades de realizá-la. A relação entre os escritores e seu tempo é discutida no posfácio da edição de Anton Reiser da CARAMBAIA, escrito por Márcio Suzuki, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. A tradução, inédita, é de José Feres Sabino.
Moritz e Goethe se conheceram na Itália em 1786 e logo estabeleceram uma relação profícua. Moritz havia caído de um cavalo, quebrando o braço, e Goethe foi seu companheiro principal durante a convalescença. Nessa época, Moritz – que estava na Itália para escrever um livro encomendado sobre as artes e os costumes do país – já havia publicado três das quatro partes de Anton Reiser, com grande repercussão. Não se sabe se Goethe já conhecia a obra.
O fato é que houve uma identificação imediata, e rendeu frutos. Moritz escreveria Viagem de um alemão à Itália e, alguns anos depois, Goethe publicaria Viagem à Itália, na qual cita um trecho de uma obra de Moritz, A imitação formadora do belo. As obras de ambos captavam o espírito da juventude alemã da época, romântica e idealista. O retrato mais conhecido dessa geração se encontra em Os sofrimentos do jovem Werther, romance de Goethe que causou furor em sua época, influenciando até o modo de vestir dos jovens, e lendariamente considerado motivo de uma onda de suicídios na Europa. Werther é citado por Moritz em Anton Reiser.
O personagem Anton Reiser, assim como Moritz, cujas trajetórias se confundem, são tidos como exemplos de vidas marcadas pela tristeza e pela frustração, embora ambos encontrem em suas histórias uma evolução em direção a seus desejos. Reiser, bem ou mal, chega a experimentar sua vocação de ator, e Moritz, em sua curta vida (36 anos), tornou-se escritor reconhecido e professor de estética com carreira sólida. A questão, no entanto, é outra – a de um personagem “em perpétua luta com ele mesmo”, nas palavras do próprio Moritz. Num período em que pensadores – como os suíços Jean Jacques Rousseau e Johann Heinrich Pestalozzi – idealizavam um novo tipo de educação e caracterizavam a infância como um período com características específicas que mereciam ser estudadas, Moritz se debruça minuciosamente sobre os primeiros anos de Anton Reiser, que ocupam praticamente as duas primeiras partes do romance.
A religião, as agruras da convivência escolar e a postura dos educadores são alvo das observações e principalmente dos sentimentos de Reiser. Moritz faz questão de insistir que Anton Reiser é um “romance psicológico” em que importam menos os fatos e mais a reação do personagem diante deles. Minúcias que de início parecem pouco importantes ganham peso mais tarde na formação de Reiser. “Um romance psicológico é, no sentido mais próprio da palavra, uma biografia e, até em suas mínimas nuances, uma das mais verdadeiras e fiéis representações de uma vida humana, como talvez jamais tenha existido”, afirma Moritz ao esclarecer suas intenções ao escrever o livro.
Paralelamente às atividades de escritor, Moritz, interessado nos mecanismos da mente humana, publicou uma revista de artigos sobre psicologia que recebia cartas de pessoas de comportamento divergente, sem apor julgamentos morais. Do mesmo modo, Anton Reiser não é uma epopeia, mas uma viagem íntima. “Não se deve esperar uma variedade de personagens num livro que conta sobretudo a história interior do homem: pois o livro não deve dispersar a força de representação, mas concentrá-la, aguçando o olhar da alma para si mesma”, escreve Moritz.
O escritor nasceu em Hannover, filho de uma família pobre, encaminhado pelo pai (assim como seu personagem) para trabalhar numa fábrica de chapéus. Foi levado ao estudo de teologia, que renegou em busca de uma carreira de ator. Além de editor e escritor, Moritz foi professor de estética e arqueologia na Academia de Artes de Berlim. Teve um casamento conturbado pouco antes de morrer. Escreveu dois livros sobre outro alter ego, Andreas Hartknopf, além de ensaios, sobretudo sobre estética.
A edição da CARAMBAIA tem projeto gráfico de Hannah Uesugi e Pedro Botton, do Arquivo. O cinza da capa alude à situação de pobreza e melancolia em que o personagem-título quase sempre se encontra, em contraste com as letras douradas alusivas a seus desejos de atenção e reconhecimento. A tipografia idêntica aproxima o título e o autor. As ilustrações internas são do artista catarinense Pedro Franz, e captam os estados de alma oscilantes de Reiser.