Pessoa e Personagem, de Michel Zéraffa, traz, para a bibliografia dos estudos literários brasileiros, um trabalho notável pela amplitude de seu corpus analítico, pela marcante penetração das relações estabelecidas e pela estruturação objetiva de seus argumentos. O tema é central no que diz respeito à criação e à recepção dos universos gerados pelas obras romanescas, principalmente aquelas que marcam época em seu tempo, e, às vezes, senão para todos, para muitos tempos, pela representatividade conseguida na modelagem e pintura das personagens condutoras dos fios novelescos. Pois no universo real, o romancista inovador encontra uma matéria-prima, mas não um modelo, uma vez que nenhuma pessoa, tomada individualmente, pode ser reduzida a um esquema intelectual e formal. Mesmo que existam linhas mais aparentes em seus modos de atuação no curso da vida, a sua variedade, mudança e reações são inapreensíveis em conjuntos perenes e definitivos, o filme da existência de um homem é irrealizável, porque, por menor que seja a redução a fotogramas, estes são carentes no que tange a seus próprios atos e manifestações no aqui e agora. Se isso é verdade, o que, então, constitui o seu croquis na linguagem literária, em especial no romance? Não só à primeira vista verifica-se que, formada por signos da linguagem no âmbito do universo do discurso, em que pese todo poder do registro sensível e da sugestão, a personagem é uma invenção de um poder artístico, portanto, uma livre anotação da sensibilidade, sem dúvida, mas não menos uma deliberada edificação do intelecto, sob bases estruturais. O autor é quem as estabelece e veste sobre este, por assim dizer, manequim as roupagens de suas projeções, que são levadas, tecidas com histórias, à recepção imaginativa e intelectual do leitor, sob a forma romance. A rica variedade que esse processo alcançou, sobretudo na época moderna e, em particular, nos anos de 1920, desenha-se em suas feições mais características e significativas na exposição que Michel Zéraffa nos faz aqui, neste livro. O fenômeno da plasmação romanesca é pinçado in situ nas obras de Joyce, Hermann Hesse, Thomas Mann, Faulkner, Proust, John dos Passos, André Gide, Kafka, Malraux, Roger Martin du Gard, Virginia Woolf, entre outros. À sua luz, o sagaz crítico francês colhe, com objetividade pontual, os elementos de comprovação para o seu ponto de vista, segundo o qual 'o romance tem por missão revelar o quanto o Eu, na finitude de sua aparência, é desproporcionado em face da imensidade do Ego, e, acima de tudo, revelar que uma individualidade jamais sintetiza uma consciência'. Portanto, se não há personagem sem pessoa, esta tampouco é redutível à figura de um herói de romance, visto que, em seu devir fenomenal, ela jamais pode ser totalizada em uma síntese, embora possa vir a converter-se, majorada, em um símbolo de sua condição. E, tanto mais na sua escritura ficcional, que depende, mesmo em Faulkner como em Joyce, sobretudo, da composição narrativa e na economia de seu desenrolar, que lhe permitem condensar eventualmente alguns traços e integrá-lo em nível de representação simbólica.[J. Guinsburg]