Senhor Vênus, de Rachilde (1860-1953), é um romance francês provocativo, da segunda metade do século XIX, que explora um emaranhado de desejos sexuais e identidades de gênero. A protagonista, Raoule de Vénérande, é uma nobre da alta sociedade parisiense que desafia as normas com seus costumes transgressores e seu notável empoderamento. Órfã desde os cinco anos, Raoule foi criada por uma tia viúva e conservadora. Ela vestia roupas masculinas, praticava esgrima e cavalgava numa época em que as mulheres só podiam usar calças compridas mediante um requerimento oficial, – o infame permis de travestissement – uma autorização que a própria autora, Rachilde, teve de obter durante sua vida.
Com tradução de Flávia Lago e notas explicativas, a edição de Senhor Vênus inclui uma apresentação de Helena Vieira e um prefácio de Maurice Barrès, publicado em 1884, na primeira edição. Este romance se destaca como uma obra literária que questiona e desafia as convenções de gênero e sexualidade de seu tempo, oferecendo uma visão audaciosa e inovadora.
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Apesar dos temas ousados para a época, o enredo parte de uma premissa simples: Raoule entra na floricultura de dois irmãos pobres, Marie e Jacques Silvert. A aristocrata fica imediatamente fascinada com a androginia e a graciosidade do delicado Jacques, rapaz sensível e aspirante a pintor. Com a ideia de tê-lo para si, ela propõe então uma espécie de mecenato a Jacques, que, nas mãos de Raoule e da irmã alcoviteira, prostituta e alcoólatra, passará por um processo de “embonecamento”. Raoule, a marido, decide tomá-lo como esposa, ditando as regras da relação a seu bel prazer, até mesmo de maneira cruel.
Ainda, além dessas relações de desejo e poder em Senhor Vênus, surge um quarto personagem fundamental intervindo nesse bizarro quiprocó erótico: a figura viril do barão de Raittolbe, amigo e antigo amante de Raoule. Assim como Raoule, Raittolbe trava uma relação sádica com o próprio Jacques, a quem certa vez espanca e deixa gravemente ferido. Muitos devaneios e manipulações se desdobram até a antológica cena final do romance, que encarna fielmente a estética decadentista do mórbido e do artificial cantado por Baudelaire n’As Flores do Mal. Além disso, Senhor Vênus faz alusão ao mito de Pigmaleão, antecedendo, porém, em trinta anos à primeira publicação da peça homônima de Bernard Shaw.
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Rachilde foi o pseudônimo de Marguerite Vallette-Eymery (1860-1953), uma escritora francesa notável pela sua obra literária que desafiou as normas sociais e sexuais do seu tempo. Nascida em uma família de classe média em Périgueux, França, enfrentou uma infância difícil e repressiva, que influenciou profundamente sua escrita.
Rachilde foi uma figura central no movimento literário conhecido como decadentismo, surgido no fim do século XIX. Seus trabalhos exploram temas de identidade de gênero, sexualidade e perversão, muitas vezes chocando a sociedade conservadora da época. Senhor Vênus é seu romance mais famoso.
Além de sua produção literária, Rachilde foi uma figura importante no cenário cultural parisiense. Ela e seu marido, Alfred Vallette, dirigiram a influente revista literária Mercure de France, que se tornou um ponto de encontro para muitos escritores e artistas da época.
Rachilde viveu de maneira independente e desafiadora, adotando um estilo de vida que contrapunha as expectativas tradicionais para as mulheres de sua época. Ao longo de sua vida, ela escreveu numerosos romances, contos e peças de teatro, estabelecendo-se como uma das vozes mais distintivas e provocadoras da literatura francesa entre o fim do século XIX e o início do século XX. Sua obra continua a ser estudada e admirada por sua audácia e profundidade psicológica.
Rachilde faz uma crítica voraz à mesquinhez burguesa e aos lugares-comuns da moral e dos bons costumes. Senhor Vênus causou tanto rebuliço a esse respeito que todas as cópias encontradas do romance foram recolhidas em Paris. O escândalo teve um lado positivo: acabou tornando Rachilde uma escritora conhecida e reconhecida pelos leitores e por outros escritores.
O estilo irônico, cômico e violento é sua marca registrada. Do ponto de vista literário, os romances de Rachilde revelam seu desdém quanto a ser um nome importante do mundo literário. Por mais que a linguagem popular desempenhe um papel importante em sua obra (na qual se reconhecem traços, por exemplo, do teatro de bulevar de Feydeau), sua escrita rebuscada coexiste com a coloquialidade, em uma verdadeira polifonia.
Rachilde sempre se mostrou como uma figura polêmica. Autora de dezenas de obras, morreu aos 93 anos, caída no esquecimento, na medida em que sua escrita ácida se atenuava. Poucas pessoas compareceram ao seu funeral, e os editores do Mercure de France se contentaram em homenageá-la com um brevíssimo obituário.