No fundo termos e alternativas como "clássico" e "romântico" não se adaptam bem a Schopenhauer: nem um nem outro satisfazem à sua atitude de espírito, que é mais tardia do que aquelas para as quais tais conceitos opostos, temporariamente afins, desempenhavam um papel. Ele está mais perto de nós que os espíritos que se ocuparam com aquela diferença e se colocaram de acordo com ela: a forma do espírito de Schopenhauer, aquela dualidade por certo grotesca de sobre-excitação e hiperaquecimento de seu gênio, é menos romântica que moderna e eu gostaria de dizer muito com essa designação, mas, no geral, referi-la a uma atitude do espírito ocidental cujo tornar-se mais sofrente só salta aos olhos de modo bem mais nítido no século entre Goethe e Nietzsche. Nesse aspecto, Schopenhauer coloca-se entre Goethe e Nietzsche; ele realiza a passagem entre eles: mais "moderno", sofredor e difícil que Goethe, mas muito mais "clássico", robusto e saudável que Nietzsche.
Thomas Mann
Arthur Schopenhauer (1788-1860), autor de O mundo como vontade e representação, parece ter se mantido à margem das correntes oficiais da filosofia. Sobre seu pensamento ainda paira a dúvida: é realmente uma filosofia? No entanto, ao tomar como ponto de partida de seu pensamento o intuitivo, o irracional, o sentimento, e tudo aquilo que não pode ser posto em conceitos, influenciou uma boa parte dos autores mais importantes do século XX como Freud e Wittgenstein, tendo inspirado também escritores tão diferentes como Proust, Thomas Mann, Jorge Luis Borges e, entre nós, Machado de Assis.
Recusando as grandes abstrações sistemáticas, a filosofia de Schopenhauer se distanciou dos grandes sistemas de seus contemporâneos do idealismo alemão, Fichte, Schelling e Hegel. Nascido em Dantzig em 1788, Schopenhauer estudou nas universidades de Göttingen e Iéna e obteve a docência em Berlim, em 1820.
Ao atacar Hegel e os outros idealistas, o filósofo ficou isolado. Em 1831 retirou-se para Frankfurt, onde levou vida solitária, totalmente desconhecido. Só a partir de 1850 sua filosofia começou a chamar atenção. Morreu em Frankfurt, em 1860.
Nestes Fragmentos, Schopenhauer expressa uma visão única e fascinante do devir do pensamento ocidental. Para o filósofo, o mundo deve ser comparado a um livro hieroglífico cujo enigma tem que ser decifrado. As filosofias são as leituras sucessivas desse mundo, as interpretações possíveis da existência. A história da filosofia é a história do deciframento desse enigma. Mas, assim como o ponto de partida para a decifração do mundo é a experiência direta do sujeito e não qualquer referência exterior, da mesma forma é a experiência da leitura do texto (do corpo do texto) e não a visão que dele têm seus historiadores ou comentadores que permite a apreensão e o entendimento correto de uma filosofia.
O ensaio traduzido deste volume tem um duplo valor: por um lado, temos a visão schopenhaueriana da história da filosofia, visão de um autor que se coloca como "artista", que relê os textos e os interpreta com sua força criativa; por outro lado, essa mesma visão polêmica, pessoal e provocadora nos remete constantemente aos textos dos próprios filósofos, pois é esse o caminho que nos leva à filosofia, assim como é o mundo e não o que dele dizem os outros, que é a fonte para sua própria decifração.
Flamarion Caldeira Ramos