Uma fita, outra fita, mais outra... No intervalo de uma e outra, de nosso aparelho humano, vamos pôr em cena a obra de João do Rio, séries de crônicas, contos, dramas e ensaios, cujo operador somos nós também: uma leitura, uma outra e mais outras infinitamente. Este livro tem por objetivo apresentar a produção intelectual e literária do escritor carioca, com reprises breves e resumidas da paisagem técnica e literária de inícios do século XX. A memória literária e técnica do Rio de Janeiro en passant, sob um corte literário cuja expressão apresenta e representa um mundo carregado de dandies, de ruas, de buzinas, de mercados, de exposições, de teatros, de automóveis, de fonógrafos, de jornais e de seres absolutamente figurinos. RESENHA João do Rio e a antecipação da vanguarda no Brasil Ivanaldo SANTOS 1 Sebastião Marques Cardoso João do Rio: espaço, técnica e imaginação literária Curitiba: CRV, 2011, 147 p. Sebastião Marques Cardoso, que é professor e pesquisador do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), lançou o seu mais novo livro. Trata-se de João do Rio: espaço, técnica e imaginação literária. Esse livro, em grande medida, é fruto da pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP), sob orientação do Prof. Dr. Luiz Roberto Velloso Cairo. Neste livro Sebastião Marques Cardoso faz uma vigorosa análise da obra do escritor carioca João Paulo Emílio Cristovão dos Santos Coelho Barreto (1881-1921), mais conhecido pelo pseudônimo João do Rio. Justamente João do Rio que, em sua múltipla função de escritor, pois ele foi ficcionista, cronista, ensaísta, tradutor e jornalista, ao analisar a cena urbana do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XX, conseguiu produzir uma obra literária que, em muitos aspectos, antecipou as propostas vanguardistas da Semana de Arte Moderna de 1922. Com esse livro Sebastião Marques Cardoso trás, de um lado, uma nova possibilidade de vislumbrar e compreender o movimento de vanguarda ocorrido no Brasil na década de 1920, e, de outro lado, ele lança a real possibilidade de reabilitação de um escritor que, durante muito tempo, foi rejeitado pela crítica literária especializada, visto, por essa crítica, como um autor superficial e produtor de uma literatura fútil. É possível apresentar sinteticamente, entre outros, três motivos para o livro de Sebastião Marques Cardoso ser uma obra de crítica literária relevante. O primeiro motivo é o fato de Sebastião Marques Cardoso demonstrar que o Rio de Janeiro, no início do século XX, era uma cidade pujante e moderna. Uma cidade cheia de ruas largas, pelos palácios e igrejas históricas. Ao mesmo tempo era uma cidade de novos e modernos prédios, uma cidade onde circulavam, com rapidez, pedestres, artistas, poetas, intelectuais, empresários e cidadãos de diversos países. No início do século XX o Rio de Janeiro era uma das melhores metrópoles do mundo para se viver e fazer negócios. Na leitura de Sebastião Marques Cardoso, o escritor João do Rio viu, em toda essa turbulência, uma quebra da manifestação tradicional do tempo (presente, passado e futuro). Na obra de João do Rio, o Rio de Janeiro, no início do século XX, era uma cidade que vivia o futuro, mesmo antes do futuro ter chegado a grande parte do Brasil e do mundo. Por causa disso, essa cidade seria um dos elementos redefinidores do tempo e, com isso, provocar o surgimento das vanguardas culturais (novos estilos musicais, novas formas de se vestir, etc). Vanguardas que posteriormente influenciaram na realização da Semana de Arte Moderna de 1922. É interessante notar que João do Rio reflete sobre a possibilidade de novas manifestações do tempo um pouco antes de filósofos, como, por exemplo, Martin Heidegger e Maurice Merleau-Ponty, pensarem sobre essa temática e, com isso, abrirem, dentro da história das ideias, uma nova possibilidade de relação entre o homem e o tempo. O segundo é a questão de que Sebastião Marques Cardoso, com grande fundamentação teórica, demonstrar que João do Rio apresenta, em sua obra, o problema da cultura ser transformada em objeto de consumo de uma elite intelectual e de uma classe média ávida por novidades. Esse fenômeno traz sérias consequências. Entre elas cita-se: a arte ser transformada em objeto de consumo, a superficialidade da produção cultural e a incapacidade da nova classe de consumidores de apreciar, com certa distinção, o conteúdo da peça cultural que foi comprada. É interessante que, neste aspecto, João do Rio antecipa, em pelo menos 10 anos, a crítica feita por filósofos, como, por exemplo, Theodor Adorno e Walter Benjamin, ao fenômeno da indústria cultural. O terceiro e último motivo é o fato de Sebastião Marques Cardoso demonstrar que João do Rio, por meio da reflexão que realizou da complexa dinâmica da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX, propõe, ao longo de sua obra, a possibilidade da inovação, da recriação e da experimentação dentro do texto literário. São as ideias de uma ruptura e de novas experiências que irão nortear a Semana de Arte Moderna de 1922. A grande diferença é que João do Rio propunha uma inovação no campo do texto literário e os expoentes da Semana de Arte Moderna de 1922 ampliaram essa proposta para outros campos da arte, como a música, a pintura e a escultura. Por fim, afirma-se que o jovem pesquisador Sebastião Marques Cardoso, de um lado, consegue, com esse livro, trazer uma nova possibilidade de se compreender um escritor nacional que, até pouco tempo, era rejeitado pela crítica especializada e, do outro lado, demonstrar que as origens das vanguardas culturais brasileiras são bem mais profundas do que se imaginava. Por tudo isso, recomenda-se a leitura desse ótimo livro. Ele deve ser lido tanto por estudantes de graduação e pós-graduação, como também pelo grande público.