Os autores desta biografia oral de Jack Kerouac (1922-1969) cruzaram os Estados Unidos durante três anos entrevistando “pessoas que Jack conhecia, amava e odiava”, para compor este documento histórico e literário sobre a geração beat e um de seus ícones por excelência. Barry Gifford e Lawrence Lee saíram a campo como quem segue “os procedimentos de canonização da Igreja Católica” — com verdadeira paixão por seu personagem. Poeta, escritor e roteirista, Gifford tem a seu crédito os roteiros dos filmes Coração Selvagem e Estrada Perdida, em parceria com o cineasta David Lynch. Gifford e Lee entrevistaram 70 pessoas para este grande concerto de vozes que recordam Jean-Louis Lebris de Kerouac, o Garoto-Memória que ficcionou continuamente sua própria vida para dar corpo a uma obra vigorosa.
A conversação começa com seus amigos de infância e adolescência, companheiros que ele converteria em personagens da novela fantástica Doctor Sax, bem como uma quase namoradinha. Mary Carney, que viria a protagonizar o romance Maggie Cassidy. Mas a pedra-de-toque são os valiosos depoimentos do ‘núcleo duro’ da beat generation como Allen Ginsberg, William Burroughs, Lucien Carr, John Clellon Holmes, Herbert Huncke e outros que viriam somar-se ao movimento, como Carl Solomon, Gregory Corso e Gary Snyder, para citar alguns, organizando um vívido painel de época em que se movem estes “andarilhos melvilleanos” (Ginsberg), com sua queda pelo submundo e pelo uso de drogas para fins recreacionais.
A experiência da estrada
Misto de biografia minuciosa e “enorme conversa transcontinental”, O Livro de Jack acompanha seu protagonista em sua trajetória obstinada em busca de uma prosa afinada com o jazz bop, enquanto abria mão de uma carreira esportiva como jogador de rúgbi e entrava e saía — de imediato — de múltiplos empregos, tanto quanto de casamentos breves. Quando a América entrou na 2ª Grande Guerra, Kerouac engajou-se na Marinha Mercante como cozinheiro, a bordo do S.S. Dorchester, e quase virou uma baixa quando os alemães puseram seu navio a pique. Também se alistou no corpo de Fuzileiros, mas acabou dispensado por insubordinação: atirou seu rifle ao chão durante um exercício, e abandonou o quartel.
No final de 1945, um personagem fundamental junta-se à vida boêmia dos camaradas beat: Neal Cassady, “o belo ladrão de carros”, “o marginal de reformatório com talento poético”, o andarilho pansexual que lia muita filosofia, e que cativou praticamente a todos, exceto a William Burroughs, que viu nele apenas um sociopata com tendências suicidas. Ginsberg teve um caso amoroso com Cassady, a quem chegou a propor uma união monogâmica, ou, pelo menos, que vivessem juntos com uma mulher de quem ambos gostassem, projeto que nunca se concretizou. No entanto, a segunda esposa de Neal, Carolyn, chegaria a encontrá-lo na cama com Allen Ginsberg e Luanne Henderson, a primeira ex-esposa de Cassady.
A semente de On The Road
As peripécias sexuais e os delitos do errante Neal Cassady — que chegou a partilhar mulheres com Kerouac, incluindo uma de suas esposas — fascinaram o escritor a ponto de transformá-lo em personagem épico, o Dean Moriarty de On the Road, além de protagonista do posterior Visions of Cody. O próprio estilo da escrita veloz de Cassady, com suas cartas espirituosas, haveria de constituir “a semente de On The Road”.
Por fim, quando Kerouac começou a datilografar Pé na Estrada — em fevereiro de 1951, num rolo de papel contínuo, escrevendo um longo e único parágrafo de 120.000 palavras —, colocaria “o santo Cassady” na história da literatura beat, embora o andarilho nunca tivesse realizado sua fantasia de ser também um escritor. Seja como for, a geração beat continua caminhando pela “grande noite americana”, exercendo permanente influência. Talvez a melhor resenha de O Livro de Jack seja um comentário de Allen Ginsberg, ao ler os originais inéditos: “Meu Deus, é como o Rashomon: todo mundo mente, e a verdade vem à tona!”.
*Texto do escritor Luiz Roberto Guedes