A sociedade atual está saturada, o que significa que está em processo de desestruturação e de reestruturação a partir dos elementos mesmos que são ora desconstruídos. Ao mesmo tempo, todo o pensamento sobre o social e o cultural está saturado, até mesmo no sentido vulgar da palavra, com velhas fórmulas e ideias feitas. O sentido, diz Maffesoli, precisa ser invaginado.
Os dois textos que integram esta edição foram publicados originariamente pela CNRS Éditions, iniciativa editorial do Centro Nacional da Pesquisa Científica da França, na forma de dois pequenos livros independentes, cada um sob seu próprio título: Apocalipse e Matrimonium (Pequeno tratado de ecosofia). São esses textos que ora se reúnem pela primeira vez, graças a esta edição brasileira, sob o título comum Saturação, decidido pelo autor em conversa com o coordenador desta coleção.
A saturação, como Maffesoli explica no prefácio a esta edição, é um processo quase-químico que responde pela desestruturação de um dado corpo e pela subsequente reestruturação desse mesmo corpo com os componentes daquilo que foi desconstruído. Na visão de Maffesoli, o que está em desestruturação e em vias de reestruturação por meio de seus próprios elementos desmontados – o que está, portanto, em processo de saturação – é a sociedade atual e, mais especificamente, a sociedade moderna, revista e recomposta agora no formato de uma sociedade pós-moderna.
E o autor retoma aqui, com outras palavras e por outras perspectivas, a descrição que fez e está fazendo deste novo formato social, isolando e reexaminando suas características e mostrando em quê e como possibilita às pessoas um outro relacionamento com a vida e o mundo, um outro estar-na-cultura por ele considerado mais estimulante e mais apto a fazer, da existência, uma obra de arte.
Ao mesmo tempo, está claro, saturação é uma palavra a ser tomada também em seu sentido cotidiano de estar cheio, de não aguentar mais – e aquilo de que Maffesoli está cheio e que ele não aguenta mais (e não está sozinho nessa sensação e nesse sentimento) é o desprezo por este mundo que existe, a negação deste mundo que existe em nome de um além-mundo moralista de cunho religioso ou político (quase sempre, uma única entidade). Essa negação e esse desprezo pelo que está aí apresenta-se como um intransponível obstáculo, um obstáculo efetivamente duro e não apenas epistemológico, para que seja possível viver a vida, vida, no entanto, hoje, a ser continuamente postergada em nome de um além pós-morte ou de um futuro que já vai raiar, mas que nunca chega porque não se permite que chegue.
Maffesoli está saturado, também, das ideias feitas, dos conformismos do pensamento sociológico, das fórmulas politicamente corretas que repetem como papagaios opiniões velhas de duzentos anos ou mais e que não terminam de espalhar-se, insuficientemente contestadas, pelo tecido da reflexão sobre o ser humano e a sociedade.
Discutindo o moralismo vazio que se opõe às práticas jovens dos piercings, das tatuagens e das roupas que mais mostram do que ocultam, o autor indaga-se sobre o que acontece quando a civilização já deu o melhor de si mesma e se transforma em cultura. Pondo sempre a tônica na qualidade da existência, Maffesoli critica os “de profundistas” e busca as vias que permitem a “eclosão das coisas” servindo-se do que denomina de sua geossociologia e sua ecosofia.
Como os outros livros deste autor e desta coleção, também este mostra-se um instrumento decisivo não apenas para o entendimento da dinâmica cultural contemporânea em si mesma como para a definição de políticas culturais que de fato criem as condições para que cada um invente seus próprios fins e não viva sob o império de fins criados fora dele e antes dele.
Teixeira Coelho