É extraordinária a vida e a obra de Edward Lear (1812-1888), este múltiplo artista inglês que a tradutora e organizadora Dirce Waltrick do Amarante soube com tanta graça reproduzir nesse livrinho, para crianças, mas não só. O mais jovem sobrevivente dos 21 filhos de um pai que passou parte de sua vida preso por dívidas, na Inglaterra da Rainha Vitória em que, graças à extensão de suas colônias, podia-se ver, ao mesmo tempo, o sol nascer e se pôr, teve, desde cedo, que arcar com uma série de aflições (asma, bronquite, convulsões) que o teriam levado à depressão e ao isolamento crônicos, não fossem os dons artísticos inatos que ele soube tão admiravelmente desenvolver.
Aos dezesseis anos começou a ganhar seu sustento com o desenho e a pintura (que nunca abandonou), curiosamente dedicados à ornitologia. Seu livro Ilustrações da Família dos Psitacídeos, ou Papagaios, publicado aos 19 anos pela Zoological Society, consagrou-o como um dos maiores artistas ornitológicos de sua época. O sucesso levou-o a trabalhar (como pintor naturalista) na propriedade do Conde de Derby e a divertir os filhos dele com curiosas composições nonsense de 5 linhas rimadas (AABBA), chamadas limericks, os limeriques, hoje consagrados no mundo inteiro, que a tradutora soube tão bem apresentar em português. O nonsense (absurdo, disparate) não tardou a tornar-se a marca registrada das composições de Lear, tanto em pintura e poesia quanto em prosa e... até na culinária (um de seus amigos foi o chef albanês, Giorgis, que cozinhava pessimamente) e na História Natural, conforme é mostrado nas ilustrações deste livro. Mas se trata do nonsense de Lear, que como nos limeriques, tem suas características próprias: obsessão pelos elencos de livros e plantas, vegetais exóticos cruzados com seres vivos, neologismos, números, sons melodiosos e “mucilaginosos” etc. etc.
Na surpreendente viagem ao redor do mundo que as quatro pessoinhas, Violeta, Stilingue, Gui e Leonel empreendem abrindo o livro Conversando com as varejeiras azuis (talvez aqui apenas insetos exóticos e colorísticos, apesar do emblema da tenacidade e da vontade de poder que sua picada tradicionalmente transmite), pode-se ver, de contínuo, como a lei de causa e efeito e as conclusões que dela se tiram são alegremente subvertidas, como no episódio do pobre rinoceronte, ao final da viagem: “Quanto ao Rinoceronte, em sinal da grata fidelidade que lhe tinham, mataram-no e o empalharam imediatamente e o colocaram então do lado de fora da porta da casa de seus pais como um diáfano limpa-pés”; ou da torta de “ambilongos”, na receita do mesmo nome: “Sirva num prato limpo e jogue tudo pela janela o mais rapidamente possível.”
Devido à saúde precária e graças a seus sucessos (em 1846 chegou a dar aulas de desenho à Rainha!), para evitar o frio inverno inglês, Lear começou a viajar pelo mundo (Itália Egito, Grécia, Índia, Ceilão...) e a escrever, além de contos, livros de viagem, artisticamente ilustrados. De sua viagem à Índia, Dirce escolheu um poema cheio de estranhamentos, escrito em 1874, que fala de um monstro (Cinturão) que come donzelas indefesas; e sua viagem pela Itália ( neste livro, pela Albanya e Calabrya) mostra como a visão do estrangeiro que consegue ter Lear “ é feita com olhos absolutamente ingleses” ou seja, como, num engraçadíssimo desenho acompanhado de uma lista, são sintetizados todos os utensílios que ele encontra, todos apetrechos necessários ao viajante e, last but not least, “os cherubins serenos que apareçeram para o author quãdo ele dormyu”.
Aurora Bernardini