Quem conta um conto, aumenta um ponto... No processo de contar aquilo que se ouviu, as liberdades oferecidas a cada sujeito quase sempre interferem no resultado que se obtém. Isso é definido claramente no ditado popular que serve de título a este breve prefácio. Entretanto, em determinadas situações sociais, especialmente aquelas em que se exigiria fidelidade total na reprodução de uma narrativa, como é o caso de boletins de ocorrências policiais, os chamados B.O., essas liberdades deveriam estar restritas ao cumprimento fiel da missão de reproduzir. E, ao que parece, não é isso o que ocorre. Por meio de uma análise minuciosa de B.O. emitidos em diferentes delegacias do estado de Rondônia, este trabalho demonstra que o processo de elaboração desses documentos (seja por meio da audiência direta do depoente, seja de forma intermediada por um policial militar que faz o registro primário) contempla uma série significativa de interferências do sujeito “escrivão de polícia”, interferências estas que não podem ser caracterizadas como meras marcas estilísticas no texto e, muito menos, como modificações ingênuas e insignificantes. Ao tratar os B.O. como discursos e, portanto, como “textos ideologizados” (e os haverá não ideologizados?), Sérgio Nunes demonstra que as interferências realizadas pelos escrivães de polícia contempla pré-julgamentos, insinuações de culpa e dolo, explicitações de valores sociais, morais e éticos; enfim, um conjunto de elementos que, em tese, não deveriam estar ali. Ao constatar essas modificações, o trabalho demonstra que a interferência do escrivão em todo o processo judicial é maior do que meramente a de registrar um fato que vai, depois, à investigação. Ao proceder essas interferências iniciais no B.O., o escrivão, de certa forma, instrui passos posteriores que poderão, inclusive, confrontar a verdade no decorrer do processo, modificando os resultados finais de todo o procedimento judicial. Isso não é nada desprezível. A jornada pelo texto que o leitor tem agora em mãos é, portanto, uma jornada de descobertas. O texto parte de uma revisão ampla das teorias acolhidas como fundamento e desemboca, como um rio caudaloso, nas análises detalhadas dos B.O., em busca das evidências de que, ali nesses registros, estão mais pessoas do que deveria haver mais discursos do que deveria haver mais valores pressupostos do que deveria haver. É um trabalho investigativo sobre o trabalho policial que se inicia na elaboração dos B.O. Nessa tarefa, Sérgio Nunes se encarna como um Sherlock Holmes da Análise do Discurso e sai incansável em busca das pistas que apontem para os “culpados” do caso. Por isso só – não bastasse sua consistência – o texto se recomendaria: por sua originalidade e pela importância das conclusões. Pode, o leitor, estar seguro de que se trata de uma jornada interessante, que nos leva com segurança pelos caminhos tortuosos do registro de ocorrências policiais, a uma conclusão já conhecida, mas antes não aplicada a tal objeto de estudo: o homem, por mais que tente, não consegue ser objetivo na construção textual. Você é sempre você e suas “digitais” discursivas – para usar mais uma vez uma figura cara aos investigadores – provam que você é o autor do crime... ops! do texto. Dr. Celso Ferrarezi Junior