A imagem de uma orelha descomunal bem poderia ser o emblema deste livro. De fato, ele parece ser o resultado de um ouvido absoluto para as vozes deste mundo e, de certo modo, até do outro. O partido compositivo – tão próprio aos impasses da modernidade – de revolver nas falas mesmas a realidade social e histórica que se deposita, como sedimento, na linguagem vai, aqui, a sua potência máxima. O livro é, assim, o lugar no qual, como em ondas de linguagem, essas vozes todas, múrmuras ou veementes, vêm quebrar. O rumor que então se levanta, engrossado do eco de tantas falas, emanadas de tantas vidas, faz sua atmosfera e clama aos céus por um sentido. Em vão, que o céu está vazio. Em um gesto de infinita piedade, o livro recolhe o imenso vozerio e seu clamor, porém não mais pode resgatá-los nem lhes dar um destino: com uma ironia dolorida e isenta de malignidade, pode apenas endereçá-los aos “Santos Anônimos”, patronos de uma inacreditável capelinha, cuja imagem verídica o leitor – ele também um “Santo Anônimo” – encontrará ao lê-lo. Verificamos, então, que esse livro tão difícil de se classificar pertence, afinal, à grande família do romance, que, como se sabe, abriga a busca decepcionada de todos os desamparados do sentido, os exilados da pátria transcendental. Um romance-limite, no entanto, porque as falas de que é tecido ameaçam formar grupos temáticos e tramas subjacentes, ao mesmo tempo que se esgarçam em todas as direções. Ficamos pensando se é um romance em formação ou em decomposição, para logo descobrirmos que é um romance que se faz desaparecendo, ou que se forma suprimindo-se – linhagem tão central quanto ignorada nas letras brasileiras. Essa estrutura paradoxal, de si tão abstrata, que tem na morte seu ponto de fuga, acolhe aqui, entretanto, a exalação de um mundo bem determinado – o da grande comarca interiorana (caipira, melhor se diria), que se estende por São Paulo, Minas, Goiás, pedaços do Mato Grosso e do Paraná. Suplantado por um mundo que, pior que ele, não o redimiu nem transcendeu, esse dificultoso mundo caipira, meio rural, meio urbano, às vezes no limite do surreal, encontra-se agora em vias de desaparição. Em as visitas que hoje estamos, tudo o indica, ele dá o seu último suspiro.
José Antonio Pasta