DOIS EM UM SÓ ORIENTE
Morada do vazio (tankas) e Nuvens de bolso (haikus), de Ricardo Corona, publicados pela Editora Iluminuras, são livros que remontam uma longa vivência e apuro das formas orientais que passam pela tradição e pelo imprescindível abrasileiramento.
Morada do vazio
Tankas
Morada do vazio foi selecionado para o Programa Estadual de Fomento e Incentivo à Cultura (PROFICE), com apoio da COPEL, reúne tankas, a forma mais praticada no Japão desde o século VII, quando a composição era feita por três estrofes, sendo duas com dois versos e uma com um verso, pontuando 31 sílabas: 5-7 | 5-7 | 7. Preferida pelas mulheres, a forma ganhou força na tradição literária quando se originaram os diálogos Soomon (amor), do gênero epistolar.
No Brasil, o tanka é pouco praticado se comparado ao haiku. O tanka é fundador da “ideia” de poesia (waka) no Japão antigo, conforme documentos do século VII. No Oriente o conceito grego de poesia (poiésis) não se desenvolveu como no Ocidente e o tanka, que era uma forma isolada, na qual se reconhecia o fenômeno que chamamos “poesia”, acabou por influenciar na criação de um termo próprio para ela. Assim “poesia” passou a ser chamada de “waka”. O termo, no entanto, aproxima-se mais de “tanka” do que de “poiésis”.
Em português, sabe-se, é muito difícil manter a montagem silábica nos versos sem endurecer o poema, dada a diferença aguda entre as línguas japonesa e portuguesa. Na medida do possível, para os tankas de Morada do vazio, aplicam-se os ensinamentos apontados por Fujiwura Hamanari em sua obra Kakyôhyôshiki — um estudo sistemático da poesia japonesa. Este estudo, divulgado entre nós por Geny Wakisaka, é um pequeno tratado de regras, em especial para o tanka, considerando que Hamanari escolheu essa forma para aplicar suas normas, que devem ser adotadas para uma melhor estrutura fonética. Hamanari apenas indica o que considera as sete enfermidades que não se deve praticar ao escrever o tanka. São elas: Tôbi, Kyôbi, Koshibi, Hokuro, Yûfûbyô, Dôseiin e Henshin.
Ricardo Corona fez uso da forma, mas manteve-se livre de sua rigidez e buscou o waka para seus tankas que são inevitavelmente brasileiros. Nesse sentido, como admirador do artista Hokusai, procurou seguir o espírito do ukiyo-e, aplicando esse conceito budista que acessa a simplicidade mundana da vida, seus pequenos e fúteis movimentos. Hokusai porque foi com a sua arte que aprendeu a ver e sentir o ukiyo-e, inclusive na derivação dada por ele, aproximando esse olhar sobre o cotidiano com um “viver o dia”, que é também tão budista: viver o aqui e agora. Seus tankas são medidas desse olhar.
Nuvens de bolso
Haikus
Um dos ganhadores do prêmio Outras Palavras/Lei Aldir Blanc (2020), o livro de haikus de Ricardo Corona traz várias referências orientais e brasileiras, especialmente Matsuô Bashô (1644-1694), estando em Nuvens de bolso desde o título, que, discretamente, homenageia o poeta japonês, fazendo referência ao seu livro póstumo Oi no Kobumi (Caderno de mochila). Incorporar os avanços desenvolvidos por Bashô não é uma questão puramente de escolha. É impossível ignorá-los, pois o poeta japonês fez uma revolução nessa forma poética, mas não sem antes passar pelas escolas tradicionais de sua época – a Teimon e a Danrin –, fundadas na primeira metade do século XVII. No entanto, para Bashô, o haiku deveria evitar maneirismos e também as contagens rígidas, puramente formais, e sim buscar a beleza simples das coisas que, segundo ele, eram decisivas para inserir essa forma poética mínima como uma percepção espiritual do mundo. Por isso, não demorou para criar a sua própria escola em 1680: a Shômon.
Nuvens de bolso está dividido em três partes: “haikus”, “haikais” e “haikoans e quase mondos”.
A primeira parte de haikus que foram escritos a partir de vivências e acontecimentos cotidianos e somam a maior parte do livro.
Os haikais que estão na segunda parte são uma pequena mostra de escritos feitos a partir de outros haikus que necessitam de uma breve contextualização: são nomeados de haikais para trazer para o livro a ideia de reescrita, e, sobretudo, brasileiramente, propor o jogo da escrita coletiva, movimento que está inserido no haikai no renga. Os haikais inseridos aqui buscam esse contexto, mas apresentam de maneira nova esse encontro das culturas. Eles foram escritos a partir de leituras de haikus de autores que o autor considera mestres, que o estimulam a escrever, a dialogar, e, assim, tratou-os como se fossem “hokkus”, afirmando essa característica antropofágica. Os haikais dessa seção também podem ser lidos apenas como releituras, apesar da nítida intenção maior ser que eles contenham a ideia de renga abrasileirado, pela extensão de assuntos, pois são diálogos, versões e aproximações de conteúdos... Na prática do renga o que menos importa é a autoridade individualizada da autoria, valendo mais a criação coletiva, o jogo.
Na terceira parte, estão os chamados pelo autor de “Haikoans e quase mondos”, reunindo poemas que lhe foram sugeridos por diferentes leituras sobre o zen, especialmente de koans. Declarado leitor voraz de koans, buscando praticá-los a seu modo, rememorando-os ocasionalmente, em momentos especiais ou envolvidos em acontecimentos que lhe sugerem a escrita ou durante oficinas que ministra, lançando mão deles como estratégia de ensinamento ou prática. Ali estão, sobretudo, poemas sobre o zen e o “mondo” – no budismo zen, “mondo” é um diálogo entre mestre e discípulo, que se destina a transformar o pensamento em intuição direta da natureza da mente.
As três seções são uma tentativa afetuosa de trazer aspectos da poética japonesa para a língua e cultura brasileiras.