Quem é, afinal, o sujeito da filosofia?
Um verbete da Enciclopédia, uma quadra de Goethe, um aforismo de Nietzsche ou até mesmo a palavra filósofo... É com breves pretextos filológicos como estes que começam os textos reunidos na primeira edição deste livro e os que agora vieram se juntar a eles nesta esperada e merecida reedição. A escolha dos trechos que vão propiciar o comentário (e de umas outras poucas passagens mais) não é, de modo algum, aleatória, mas comandada por uma fina habilidade estilística e uma armação conceitual bem definida: os textos escolhidos ilustram, como afirma modesto "esclarecimento" do autor, "alguns poucos pontos bem definidos de História da Filosofia Moderna".
A forma "ensaio" tem assim um sentido original, característico e preciso neste livro: os ensaios são uma forma de ilustração. Mas o que exatamente eles ilustram? Desde a revolução transcendental levada a cabo pela crítica de Kant, mostra-nos Gérard Lebrun, a filosofia perdeu os seus até então legítimos objetos. O que surgiu no lugar deles? Os novos “temas": as ideologias, as ciências humanas... A partir das preciosas coordenadas estabelecidas por Lebrun, Rubens Rodrigues Torres Filho pôde mapear o terreno muito fértil que será, a partir de então, o seu: com a filosofia kantiana e, sobretudo, com o idealismo de Fichte e Schelling, o problema passa a ser não apenas o dos objetos da metafísica, mas também, e talvez mais agudamente, o de uma crise geral do discurso filosófico que põe dificuldades para que se reconheça até mesmo quem é, a partir de agora, o seu autor. E de fato a pergunta que parece puxar o fio de todas as demais indagações do livro é apresentada logo de saída, no primeiro ensaio do volume: “Como o sujeito da filosofia se torna, por sua vez, questão?”
Percorrendo os outros ensaios, nós leitores percebemos que um dos lances mais surpreendentes do livro é ir trazendo à cena diversos atores que dão voz a esse sujeito problemático — figuras bem localizadas na história, na filosofia e na literatura, que aparecem com antecipações e personificações desse esquivo eu transcendental de Kant e Fichte: o sobrinho de Rameau, o déspota ilustrado, a filha natural do drama de Goethe, mas também figurantes não menos fulgurantes da história do pensamento posterior e nosso contemporâneo, como o Absoluto hegeliano, o inconsciente freudiano, o toujours-dejà estruturalista, a dissolução da instância do autor... Quem poderia imaginar encontrar, em Kant, a raiz de tantas transfigurações? É que o transcendental, explica-nos o autor, pode ser comparado a uma espécie de "aurora, limbo matinal onde há significações antes de haver mundo..." O transcendental, que não está em parte alguma e em todas, é o que dá “consistência e sentido ao nosso discurso real”.
Mas se o compreendermos bem, veremos que esse sujeito indefinível é condição não apenas do “nosso discurso real”, mas também condição da exegese do discurso. É assim que também vemos surgir no livro alguns desdobramentos (o romantismo estudioso de Novalis, o eterno retorno de Nietzsche) daquilo que o autor apresenta como as condições transcendentais da interpretação, da hermenêutica moderna e, por uma mise en abîme, até de... nós mesmos, leitores. Sutilmente, sem que percebamos, ele também nos colocou em cena. — Nós, quem? Ele, quem? Sim, ele: Rubens Rodrigues Torres Filho.
Márcio Suzuki