"A velha barca de Pedro já tinha atravessado muitas tormentas no decorrer do quase milênio e meio que durava a sua história, mas aquela que se avizinhava em meados do século XIV fazia pressentir que seria a pior. Os duzentos anos que vão de 1350 a 1550, sobre os quais está centrado este volume da História da Igreja de Cristo, assistiram à agonia do ideal que inspirara a Idade Média, o sonho da Cristandade, imerso agora numa tríplice crise: de autoridade, de unidade e das consciências. Não era apenas mais uma época de dificuldades: era o fim de um mundo, ainda que não o fim do mundo, e ameaçava arrastar consigo a Igreja no seu naufrágio.
Num primeiro momento, com o retorno de Gregório XI a Roma, graças aos esforços de Santa Catarina de Sena, podia-se alimentar a esperança de que o término do “exílio” do papado em Avinhão tivesse resolvido as questões mais graves. Mas já em 1378 o Grande Cisma do Ocidente dividiria as fidelidades dos cristãos entre papas e antipapas, até que, depois de quase trinta anos, o Concílio de Constança viesse a pôr fim à angústia das almas. Pouco depois, em Basiléia, seria o próprio concílio que se voltaria contra o Papa, procurando submeter o Vigário de Cristo à assembléia conciliar e diluindo a estrutura da Igreja numa pseudodemocracia autodissolvente.
A crise dos espíritos não se manifestava apenas na cabeça. A França debatia-se ainda na Guerra dos Cem Anos quando Santa Joana d’Arc polarizou pela primeira vez as aspirações de toda uma nação. Na Inglaterra e na Boêmia eclodiam entre o povo os movimentos revoltosos de Wiclef e Huss, de inspiração tanto nacionalista como religiosa. Ao mesmo tempo, a vaga turca crescia, submergindo os restos do Império Bizantino e ameaçando afogar a Cristandade inteira.
Enquanto o papado ainda firmava os pés, e no seio das turbulências políticas, borbulhando numa confusão criadora que se estendia da arquitetura às letras, das artes à astronomia, nascia o humanismo: cristão nos seus maiores representantes, como Thomas More e Erasmo de Rotterdam, mas também dotado de um inquietante caráter anticlerical e paganizante. A certa altura, com as controversas figuras dos papas da Renascença, e apesar do furor cego de um Savonarola, pôde-se chegar a pensar que a Igreja estivesse descristianizada no seu coração.
Mas o pior ainda estava por vir: dos tremendos dramas de consciência do jovem monge Martinho Lutero nasceria em 1520 o dilaceramento protestante. Confuso e hesitante no início, o movimento em breve receberia a sua estrutura teológica e a sua disciplina da férrea e glacial soberba de Calvino. Mas, dividido em mil seitas e facções, erguendo-se em sangue e fogo no anabatismo alemão e holandês, esmagado aqui e alentado ali pelas intrigas dos estados nascentes, a “reforma” logo confirmaria a verdade da frase de Péguy: “Tudo começa em mística e acaba em política”. É o cisma anglicano de Henrique VIII, a estratégia hesitante de Carlos V, as sangrentas perseguições de Eduardo VI e Maria Tudor, a ambivalente tolerância de Francisco I...
Serão tudo sombras nesse quadro? É preciso dizer que não. Se a Europa central e do norte ameaçam ruir sob os golpes combinados de turcos e protestantes, no outro extremo, sob Fernando de Aragão e Isabel de Castela, a Espanha ultima a Reconquista e, na esteira de Portugal, lança as bases da conquista e da construção de um Novo Mundo. Também não falta, nessa cristandade descarrilada e exaltada, um renascimento da piedade que propicia a descoberta da dimensão íntima da pessoa e da devoção afetuosa à Santíssima Humanidade de Cristo: a devotio moderna. E se alguns papas não souberam situar-se pessoalmente à altura das exigências do seu cargo, devemos reconhecer que nunca conspurcaram a pureza da fé e que, em muitos aspectos, desempenharam um papel histórico no qual não se pode deixar de entrever o dedo da Providência.
Por outro lado, enfrentando tragicamente a Igreja, foi o protestantismo quem a obrigou a sair do mar de lama, de facilidades e de conivências em que se atolava. Sem ele, sem o medo que suscitou, teria a Igreja empreendido a reforma autêntica, levada a cabo na fidelidade e na disciplina, cuja necessidade tantos espíritos reconheciam mas tão poucos homens de caráter ousavam realizar? Dialeticamente, foi de Wittenberg, Augsburgo e Genebra que saiu a Igreja do Concílio de Trento, confirmando com uma força até então insuspeitada as palavras de São Paulo: É preciso que haja hereges (1 Cor 11, 19). Tal é o paradoxo de uma instituição composta por homens, mas guiada pelo Espírito Santo."