Esse livro abre novas possibilidades de reflexão sobre a dança e sua expressão. O filósofo português José Gil repensa aqui nada menos que os fundamentos ontológicos da dança: o corpo, a linguagem, o gesto, o sentido, a consciência, a comunicação. E o faz dialogando ricamente não apenas com o trabalho de criadores e teóricos da dança, como Rudolf Laban, Merce Cunningham, Yvone Rainer, Steve Paxton e Pina Bausch, mas também com filósofos como Merleau-Ponty, Kant, Husserl, Deleuze e Guattari.
Não foram poucos, na modernidade, os que decidiram refletir sobre a dança, como ponto de partida para suas peças. Para ficar só em dois exemplos: movimentos cruciais, como, de um lado, o grupo americano da Judson Church e, de outro, a alemã Pina Bausch, estão separados tanto geográfica quanto temporalmente, mas ambos exibem grandes mudanças na maneira de se entender a dança, recolocando, cada um a seu modo, a questão do gesto e da representação.
São movimentos que só agora estão sendo destilados; e Gil os põe em foco, passando ainda por Cunningham e pelo pós-modernismo: “Em Cunningham a consciência do corpo governa a consciência”. Mas que isso não seja mal entendido: “o sentido da dança é o próprio ato de dançar. [...] O gesto tende a encarnar o sentido. É o movimento do sentido que agora vemos no corpo do bailarino. Porque a dança cria um plano de imanência, o sentido desposa imediatamente o movimento”.
A consciência do corpo porta a comunicação inconsciente do movimento. Neste sentido, com linguagem caracteristicamente rigorosa e sugestiva, Gil aborda a relação do corpo proposta por Steve Paxton (na técnica de contato improvisação) como uma comunicação de inconscientes: “é o corpo que estabelece a mediação entre o pensamento e o mundo”.
Para Gil, enquanto Cunningham procura libertar a dança de certos espartilhos, Yvone Reiner e Steve Paxton queriam libertar os corpos, quebrando todas as normas. E é um tal questionamento que nos dá instrumentos para ver a dança hoje.
Já o descrédito da representação e a insistência na presença do bailarino são legados de Bausch. Para ela, uma palavra vem rodeada de emoções não definidas, de tecidos esfiapados de afetos, de esboços de movimentos corporais, de vibrações mudas. Forma-se uma atmosfera não verbal, que rodeia toda a linguagem.
Em todos esses casos, é a dança que “articula o sentido e o não sentido”, que nos faz compreender o “real” e o “irreal”. A dança é o “ato puro das metamorfoses”, ou o “devir puro da vida”. Cabe a Gil, então, tecer essa trama da pós-modernidade na dança, em suas complexas e inspiradoras relações de sentido. E a dança, então, ressurge como potência fundamental, no reino da acidental contingência: “Dançar é criar imanência graças ao movimento. Dançar é fluir na imanência”.
Inês Bogéa