A maior parte dos discursos do sr. Hume é uma cópia tão exata do método mais perfeito e fácil de investigação, que vemos, diante de nós, a cada passo do argumento, a maneira como ele teria concebido os sentimentos que recomenda. Para evitar objeções, ele tem o cuidado de esconder os resultados de algumas de suas investigações até que o leitor esteja preparado para aceitá-los, em virtude de uma gradação tão suave de observações e inferências que é impossível não os admitir. E, se, porventura, o leitor hesitar em assentir ou quiser recusar o assentimento, não saberá onde encontrar objeções, visto que assentiu às premissas do argumento antes de estar ciente dos resultados. É preciso, portanto, muita cautela na leitura desse autor.
Joseph Priestley
O filósofo escocês David Hume (1711-1776) é mais conhecido nos dias de hoje como autor do volumoso Tratado da natureza humana, livro importante, obrigatório nos cursos de epistemologia, teoria do conhecimento e filosofia da ciência. Também é estudado como um “grande cético”, responsável por destruir os alicerces da metafísica clássica, substituindo as certezas delas pela dúvida. Mas a imensa fama da qual Hume desfrutou no século XVIII – na Grã-Bretanha bem como no continente europeu – foi devida sobretudo aos seus escritos posteriores ao Tratado (que ele mesmo via como obra de juventude), obras mais concisas e menos abertamente técnicas. Dono de um estilo próprio e original, Hume é um dos responsáveis pela consolidação da prosa de língua inglesa. O registro de sua escrita, clara e direta, voltada para o leitor que não é especialista, constitui um bom exemplo do equilíbrio entre as duas características que o próprio Hume recomenda para a perfeição da “arte de escrever”: a simplicidade, pela qual o autor desaparece da obra; o refinamento, que mostra a sua presença nela. Unidas numa prosa fluente e acessível, o balanço dessas qualidades, como mostra Hume, dá ao texto filosófico uma transparência que seria de outra maneira impensável.
Os A arte de escrever ensaio e outros ensaios que o leitor tem em mãos são o testemunho talvez mais vibrante do êxito que o autor alcança nessa tentativa de remodelação da sua própria linguagem filosófica. Dos gêneros da arte de escrever, o ensaio é provavelmente o mais conveniente à vinculação do raciocínio crítico, das construções sugestivas, porém inconclusivas. Não é por acaso que Hume se decide pelo cultivo desse gênero, quando se trata de elaborar uma ciência da natureza humana.
Ao lado de duas investigações (sobre o entendimento, sobre a moral), de duas histórias (uma da religião, outra da Inglaterra) e de diálogos (sobre a religião natural), os Ensaios respondem pela maturidade filosófica de Hume, e são, ao lado daqueles escritos, a maneira que o filósofo encontra para descrever o seu objeto e, atento às suas infinitas nuances, reconhecer a natureza parcial e incompleta de todo e qualquer exame conceitual daquilo que constitui o homem, este ser naturalmente social. A força dessa proposta não passou despercebida pelos contemporâneos de Hume.
De Rousseau a Smith, de Burke a Kant, a filosofia das Luzes se empenha em encontrar uma resposta filosófica ao estilo de Hume, algo que possa dar conta do desafio por ele lançado e que todos reconhecem ao menos como legítimo: que a filosofia deixe o domínio dos especialistas para se constituir no jogo das paixões e dos sentimentos, que são a mola propulsora da natureza humana; que o filósofo se torne ciente de que as suas doutrinas serão inócuas se não puderem reconhecer-se como o resultado da trama de um discurso que, como qualquer outro, é motivado em primeiro lugar pelos sentimentos do autor que o concebeu.
Os ensaios de Hume aqui reunidos são mostra inequívoca de como as difíceis questões postas pelos filósofos requerem da parte do leitor, para ser decifradas, o prazeroso exercício da reflexão, o único capaz de dar vida à letra do texto e de fazer jus a um autor que permanece, em pleno século XXI, pertinente e inquietante.
Pedro Pimenta