Convidada para a III Bienal da Bahia, em 2014, a artista plástica Camila Sposati decidiu criar para a mostra uma complexa estrutura que chamou de Teatro Anatômico da Terra.
Teatro, porque a construção de madeira se baseava na forma de uma pequena arena circular, com o palco no centro e, em torno, os lugares para a audiência assistir às apresentações cênicas.
Anatômico, porque se referia na forma e no conceito aos anfiteatros renascentistas onde se começou a praticar, diante de olhares curiosos e estupefatos, a dissecação de cadáveres humanos e animais.
Teatro Anatômico da Terra, porque não foi erguido sobre o solo, como são habitualmente construídos os teatros, mas foi escavado no chão, até uma profundidade de quase seis metros, nos fundos de uma casa colonial em ruína, em Itaparica, ao lado de Salvador.
Ou seja, Sposati não pretendeu criar apenas um espaço para experiências teatrais, mas também – e sobretudo – uma estrutura que levasse o público a deixar a superfície do mundo e descer, literalmente, ao fundo imemorial das entranhas da Terra.
“O buraco é uma imagem e também um vácuo que nos faz questionar e sentir um pertencimento à Terra, a experiência de estar vivo, à vitalidade”, explica a artista, neste livro fascinante, que registra a longa e conturbada história da construção do teatro, cujo projeto foi iniciado muito longe da Bahia, em pesquisas feitas por Sposati no Turcomenistão, a partir de “buracos” produzidos pela natureza e também pela exploração do homem, na era soviética.
“O Teatro Anatômico da Terra propõe uma encenação do drama do Moderno a partir de cada um de seus atos: camadas geológicas, arqueologia da espécie e da civilização, aumento brutal da escala, erupção de um novo tempo no espaço e, sob a perspectiva bergsoniana, o confronto com o vazio e a necessidade de outra forma de energia capaz de preenchê-lo”, escreve o crítico e curador Marcelo Rezende em um dos textos do livro que tanto analisam a desafiadora obra de Sposati quanto interrogam o leitor sobre as relações entre arte, natureza, história e pensamento.
Completam este Teatro da pedra penetrantes ensaios do artista Falke Pisano, do antropólogo Frédérick Keck e do médico Paulo Rosenbaum, além de entrevistas com o químico Andréa Sella e o arquiteto e o artista Juraci Dórea.
Formada em história, com Mestrado em artes plásticas pela Goldsmiths College, Sposati é uma artista que não se limita ao que lhe pode oferecer o “campo da arte”. Sua inquietude intelectual a leva a transitar em territórios um tanto inóspitos aos artistas, como a geologia e a química. É a arte, porém, que a conduz com segurança por esses caminhos, ciente que ela está de que apenas a criação artística é capaz de escavar dúvidas e produzir perplexidades sob o solo confortável das certezas.
Alcino Leite Neto, jornalista e editor.